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    terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

    O sepulcro, a coruja, o gato e o Rei

    Sobre o sepulcro noturno,
    Em meio as flores do ipê,
    Espera um gato soturno
    A coruja que a tudo vê.
    E como quem quer a paz
    Eterna das sazonais flores,
    Passa os dias, calado,
    A respingar o suor dos seus odores.
    Não fala, não mexe, não ri,
    Não quer mais nada ter,
    Tão somente sorumbático
    Espera, flácido,
    Espera, estático,
    A coruja que a tudo vê.

    Uma cruz, uma tumba, um pensamento;
    O triângulo mudo se aplaina
    Na noite escura do tempo
    E suas retinas cravejadas de mágoa
    Esperam pacientemente em sua mira ter
    A coruja fria e mórbida que a tudo vê. 

    Um despacho de cemitério,
    Uma alma morta, outra estéril,
    Com um grilo alado fazendo canção
    A tuba longa e fria sair dali não dá não.

    Se no longo país da morte
    Pudesse também passear,
    Levaria sua bagagem para ao menos
    Uma eternidade passar,
    Entretanto não dá pra ficar numa tumba
    Fresca
    E viajar nas asas da escuridão
    Senão pela vontade de conter
    A coruja soturna que a tudo vê.
    Seria um vou rasante, ao menos,
    Veria a quem sua alma presa está.
    Soltaria um beijo, um grito, um abraço,
    Quem sabe do que sobre o crepúsculo
    Infernal uma alma sobre as asas
    Da coruja que a tudo vê
    Pode, coitada, sozinha, aprontar.

    Mesmo correndo o risco
    Do portal da câmara da morte,
    Antes de sua saída, fechar.
    Não almeja outra coisa senão ao olhos do mal
    O pedido pôr.
    Nos braços do tempo, seu corpo
    Cabeludo, sem paz, sem fruto,
    Em meio a queda lúgubre das flores do ipê,
    Espera incontinente a coruja que a tudo vê.

    Os dias se vão, abrem-se mais covas,
    Uma ali e outra e mais outras
    E o moço silente com olhar na cruz
    Com receio sente que o que faz
    O repele do Homem da Luz.

    Ao mínimo do ressentimento,
    Um gato preto na tumba pula,
    Seus olhos vermelhos,
    Sua pele lisa,
    Seus dentes mostram agrura;
    Sem movimento brusco,
    Sem nada fazer,
    Sai por entre as tumbas.
    O que ele quer dizer?
    Mas o bichano misterioso
    Some nos sepulcros
    Aprisionadores de corpos
    E ele que não se mexia há anos
    Levanta-se para o pedido fazer.
    Não deu três passos,
    Não deu uma fala,
    Porque duma cova recente
    Uma coisa maltrapilha
    Mal humorada se mostra,
    “Sou o anjo da fria morte
    Que você quer ter”
    “não entendo, queria
    Uma coruja, pequena e fria
    Que faça comigo uma viagem”.
    “Sou o rebento selvagem
    Que a tudo nesse ambiente vê.
    Te vejo deste quando na tumba de teu filho de meses
    A primeira vez você sentou e não saiu mais”.
    “sou um homem de pensamento simples”
    “Eu sei”
    “Sou um herdeiro sem graça”
    “Eu sei”
    “Sou um filho sem filho”
    “Eu sei”
    “Sou um moribundo que a coruja que a tudo vê
    Queria entre meus dedos ter”
    “Eu sei”
    “E eu que pensei que isso eu podia domar”
    “Eu sei”
    “Meu anjo enterrado ali está”
    “Eu sei”
    “Estou arrependido”
    “Eu sei, por isso vim logo te buscar!”
    Nisso um frio caudaloso na espinha lhe corre
    As retinas cressem e as pernas bambas
    O põem no chão
    E a sua alma foge.
    “Você não queria ter a coruja soturna que a tudo vê?
    Então se prepare criatura débil
    Que tua viagem você acabou de ganhar”
    Então respingando odor, barbudo, maltrapilho
    Sem pé, sozinho, se lembrou do Homem da Cruz
    Dos seus braços fincados, do sangue santo, do momento suado,
    Clamou “Deus Santo dos altos céus
    Eu não sabia o que estava fazendo”
    Enquanto isso, o pio estridente
    Se aproxima, mas forte, mais turvo,
    Era a negra morte
    Que vinha ao homem do anjo da tumba buscar,
    Mas o coração elétrico
    Tocava o céu
    “Deus não me deixe sozinho nesse triste lugar”
    De repente uma luz
    Transformou o cemitério
    Um dia de sol paradisíaco passou a brilhar
    A coruja e o anjo tosco entre as tumbas
    Buscaram seu refúgio no Ades,
    Assim entendeu que era o Homem da Cruz,
    Mas para ter certeza perguntou
    “Quem é o Senhor?”
    “Sou eu Jesus!
    Fui um filho numa tumba por três dias
    E meu pai de teu sofrimento bem sabe”.
     “Meu Deus, meu Deus, perdão!
    Agora vejo que era um cão;
    A todos direi que tenho o Rei”.

    Depois de dias, a coruja que a tudo vê,
    Sobre a lápide fria,
    Pia, pia e pia
    Nos dentes pontiagudos do felino
    Que há tempos a caçava para a comer.

    (BARROS, Josiel. A Barca e o Farol. p. 85-89)
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